Jardim
É incrível
poder parar, olhar esse enorme jardim e pensar que tudo mudou em tanto tempo.
Meu pai sempre diz que o meu choro foi o mais forte, acordei a todos que
estavam abaixo daquela mesma tenda, até os intubados se arrepiaram ao ouvir meu
grito de vida, depois soube que o médico do plantão daquele dia passou anos
comentando que o milagre de um choro de vida salvou pelo menos três mulheres,
penso que deveriam ser mães, ouviram meu choro e mesmo em coma induzido
reergueram suas forças internas para voltarem para casa. Meu pai não acompanhou
meu nascimento, não podia, era regra. Minha mãe estava infectada e aquele
hospital de lonas brancas foi feito para conter a doença, minha mãe passou
vinte e dois dias internada, eu nasci no vigésimo dia de sua internação, que
por coincidência era o dia vinte de fevereiro de dois mil e vinte, por conta de
ela estar intubada nasci com pouco mais de dois quilos às duas horas da
madrugada. Ela morreu dois dias depois
do meu nascimento, intubada e provavelmente sem a plena consciência de que
havia me dado à luz, pelo menos é o que os médicos dizem, eu não acredito
neles.
Meu pai costuma
dizer que nasci desafiando a morte e o governo. Eu gosto e acho graça quando
ele fala isso, mas sempre me sinto mal, inevitavelmente após isso ele lembra dela,
e entra em um mutismo que as vezes dura dias. Quando me entendi por gente
pensante, descobri e entendi a minha história, é claro que me coloquei como
agente da morte e fui meu próprio juiz, promotor, advogado e júri. Sempre me
coloquei como assassino de minha mãe, quando comecei a ler me declarava aos
amigos como regicida, eles não entendiam, mas somente eu sabia quem havia matado,
minha rainha. Meu pai, ao saber desses meus sentimentos e pensamentos, pelo
contrário, dizia que não, que eu era vida. Que tudo começou a mudar quando eu
nasci, meu choro foi a trombeta que destravou as vacinas “mãe intubada dá à luz
e não resiste devido consequências da doença, bebê passa bem”, foi a primeira manchete
que saiu, logo em seguida a comoção foi enorme. Em pouco tempo, meu choro ecoou
tão forte que abalou o governo, negacionista que minimizava as ondas seguidas
de morte. Até hoje, mesmo com quarenta anos, sou reconhecido por alguns na rua,
principalmente dos que protestaram na rua pela queda daquele que gerenciava as
mortes no Planalto.
Eu não vivi o
que meu pai viveu, muito menos sei o que foi viver antes de o mundo mudar, e
principalmente de Brasília virar o que viria a ser hoje. Esse jardim aqui é
prova disso, pelo menos meu pai sempre diz isso, e ele deve saber do que fala,
afinal de contas ele viveu em dois mundos, eu por enquanto apenas nesse. A
vacina curou muito mais do que uma doença que levou centenas de milhares, ela
deu um estalo nas pessoas, meu pai diz que foi meu choro que ecoou no país, mas
pelos livros de história eu entendo que foi algo mais profundo, algo mais
social. Brasília é quase como esse jardim, a cidade planejada que era par ser
imutável, mutou-se, não fisicamente, mas dentro, assim como eu agora aos
quarenta.
Os discursos de
segregação, do nós contra eles, deram espaço a outros, mais humanistas. Tenho
pouca memória desses momentos tão fortemente lembrados pelos mais velhos, mas
lembro de viver em uma Brasília que era feita como um avião e que me levava
para vários lugares. Por ter sido a criança que chorou e acordou a pátria mãe
gentil, muitos dizem que rompi com os muros que dividiam e impediam o avião a
voar de fato, o que nunca compreendi, pois a Brasília que vivi e vivo hoje
sempre me abrigou, sempre me respeitou mesmo com minha deficiência atribuída a
gestação conturbada que tive. Brasília me fez voar quando nunca pude andar, e
hoje é muito mais ampla e acolhedora do que quando nasci. Os hospitais de
campanha nunca mais foram levantados, as entre quadras abrigam hoje piqueniques
e não mais aquela apreensão de andar a suspeita de um assalto que minhas tias
tanto falavam terem medo, o telhado do Congresso voltou a ser aberto e a
população, simbolicamente anda por cima daqueles que elegera, as cidades que
antes eram conhecidas como satélites, distantes e em orbitas obtusas, hoje são
chamadas de bairros, mais próximos e vizinhos de verdade.
Esse jardim já
foi repleto de rosas, quando minha mãe era viva, meu pai gostava mais de
girassóis, está até mau cuidado nesse momento, faz duas semanas que meu pai se
foi, hoje entendo o que esse jardim já passou e o que ele representa, o que
viveu e como já mudou. Não sei o que vou plantar, mas sei que darei uma vida
diferente a esse jardim.
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