Quando Felipe chegou à cidade histórica de Penedo, no
estado de Alagoas, não poderia ter imaginado que estaria em um lugar tão
precário e sem estrutura como aquela cidade. Criado em Brasília desde os três
anos, Felipe sempre teve a impressão de que todas as outras cidades que havia
conhecido eram estranhas. Estava em Penedo, com suas ruelas centenárias, para
vender a casa herdada pelo tio que faleceu.
Os pais dele morreram quando ele tinha apenas
dois anos de idade, seu tio sendo o único parente vivo o mandou para ser criado
por uma antiga namorada sua. Felipe sempre soube de sua origem e do tio ausente
que nunca mandava uma carta ou sinal de vida. Mãe Vanessa, era assim que ele
chamava a mulher que o criou.
Ela
nunca disse uma palavra sobre os motivos que levaram seu tio a mandá-lo para
Brasília. Até que receberam uma carta, Felipe até esquecera que tinha um tio
vivo, estava mais ocupado com o terceiro período da faculdade de jornalismo,
anunciando que ele havia sido encontrado morto, morto há mais de três dias de
acordo com o legista. O corpo estava apoiado contra a porta de entrada, dando a
impressão de uma inútil tentativa de manter algo fora de casa por mais que não
houvesse nenhum vestígio de arrombamento. Na mão dura do cadáver pressionada
com força contra o peito estava seu testamento deixando tudo que era seu ao
sobrinho, uma casa singela de cor azul com duas enormes janelas e uma porta de
madeira na cor branca próxima ao convento, a casa por si só não tinha nada de
especial, quatro cômodos mal distribuídos e a única ventilação vinha da frente,
pelas janelas e porta.
Felipe
já não havia gostado da cidade em si, nunca gostou de cidades históricas, sem
padrão, com ruas tortas, casas coladas as calçadas com as janelas e portas
dando acesso direto a sala. E aquelas carrancas horrorosas ao lado das portas
de todas as casas da rua. Tudo isso era inaceitável para Felipe, quanto mais
rápido ele vendesse aquele entulho mais rápido voltaria para sua casa e seus
estudos.
- Uma
morte trágica - disse uma voz atrás dele fazendo-o levar um susto - era um bom
homem. Às terças gostava de jogar dominó no boteco do Zé. Você deve ser o
sobrinho dele, Fábio? - perguntou uma senhora já de idade.
- Meu
nome é Felipe - disse após se recompor do susto - poderia saber quem é a
senhora?
-
Perdoe meu fi, já sou muito velha e a memória é um artigo de luxo pra mim. Pode
me chamar de Iracema, ou simplesmente vó Ira. Todos aqui me chamam de vó Ira.
Deve ter vindo para morar na casa que seu tio deixou, num é mesmo?
-
Desculpe-me, mas prefiro entrar agora, peguei duas horas de avião e mais quatro
de carro de Maceió até esse fim… até esta cidade. Depois conversamos.
- Claro
que você está cansado, eu sou apenas uma velha xereta mesmo. Dipois de amanhã
vamos ter a festa dos pescadores no Velho Chico, é uma festa tão linda.
Descanse bem para as comemorações.
Depois
de entrar na casa e trancar a porta com a pesada chave de ferro Felipe tinha a
certeza, depois do encontro nada prazeroso, de que tinha que sair daquela
cidade antes da tal festa dos pescadores.
Não
tinha nada para comer na velha casa, ou o tio vivia de ar ou deveria sempre
comer no tal bar que a velha havia dito mais cedo. Mesmo sem vontade de sair e
conhecer a cidade, Felipe foi direto para a rua principal que beira o rio São
Francisco, na esperança de achar algum bar ou restaurante aberto para comer
algo. O que mais o assustou durante o percurso de pouco mais de três ruas,
foram as carrancas ladeando cada porta. As esculturas eram quase todas do mesmo
tamanho, algo em torno de um metro, algumas, pouca coisa maior ou menor, as
bocas escancaradas vermelhas e os dentes afiados sobressalentes, os olhos
arregaçadas e esbugalhados. Cada carranca era mais feia que a outra, isso fez
um arrepio percorrer todo o corpo de Felipe, um medo primitivo que nem mesmo
ele sabia que poderia sentir. Não sabia distinguir se o medo era por conta das
carrancas ou se as carrancas eram o motivo de algum medo guardado em seu
subconsciente.
Chegando
a larga praça que margeia o rio, Felipe logo vê o bar do tal Zé que a velha
havia falado.
- Boa
noite - disse o dono do bar, o próprio Zé. Um homem magro já com mais de
cinquenta e um olhar perdido como se o álcool já tivesse tomado conta do seu
corpo - só de olhar para você já sei quem é. Deve ser o sobrinho do Carlos.
Você é a cara do seu pai.
- Boa
noite - disse Felipe sem jeito - você conheceu meus pais?
- Claro
que sim, seu pai e teu tio vinham aqui todas as terças jogar dominó. Seu tio
manteve a tradição até… Desculpe-me, meus pêsames, ele foi um bom homem.
- Sem
problemas, não éramos muito próximos. O que você ainda tem para comer a essa
hora? E você poderia me contar algo sobre os meus pais?
- Pela
amizade que tive com os da sua família, hoje você vai comer por conta da casa,
por mais que seja um pastel frio, é o que posso a essa hora - disse o Zé
pegando o pastel e saindo de trás do balcão e apontando para uma mesa onde os
dois sentaram - meus clientes mais bebem do que comem. Acredito que você vá
morar na casa da sua família não é mesmo?
- Um
pastel é mais do que eu preciso, é apenas para passar a noite. Em relação a
casa, os meus planos são outros, pretendo amanhã mesmo fazer uma procuração ao
advogado do Carlos - recebeu um olhar de censura do Zé - desculpa, do meu tio
para que ele venda a casa.
- Não,
você não pode - Zé disse de forma enfática - você tem que participar da festa
dos pescadores, é depois de amanhã. Sabe, a história por trás dessa festa é
muito interessante. A cada vinte anos todos os pescadores desde a nascente até
de onde o São Francisco deságua no mar, se reúnem aqui em Penedo para fazer
oferendas ao Caboclo D’água e poderem continuar a pescar nessas águas.
- Deve
ser muito interessante, mas não gosto muito dessas festas supersticiosas.
- Não,
não é uma festa supersticiosa. Sabe, o Caboclo D’água é uma mistura de macaco
sem pelos, com rosto de peixe, no lugar das patas ele tem longas unhas, para
fixar na lateral dos barcos e virá-los para matar os pescadores. Há séculos,
dizem que um pescador fez um acordo com o Caboclo e, por isso, todos se reúnem
a cada vinte anos aqui em Penedo para fazer suas oferendas e continuarem a
pescar nas águas do Velho Chico.
- Muito
interessante sua história, mas não pretendo mesmo ficar para essa festa. O
pastel estava uma delícia, mesmo frio e obrigado pela cortesia. Até mais -
Levantou-se sem dar tempo de resposta ao Zé e tomou o rumo de casa.
O único
movimento que havia na cidade era nas proximidades do bar. Assim que virou a
esquina Felipe se deparou com uma rua vazia e algo que o fez parar por um
momento. Todas as carrancas que existiam aos lados de cada porta agora estavam
voltadas para ele, ou para o rumo que ele estava, o importante era que todos
aqueles olhos inanimados e bocas abertas estavam agora voltados para ele.
Apenas firmou o olhar para os próprios pés e andou o mais rápido possível para
a casa. As carrancas não se moveram, mas ele pode sentir que elas o olhavam. Ao
chegar, com os sentidos aguçados de medo pode então perceber que a casa do
finado tio era a única da rua que não tinha uma carranca.
Acordou
com as batidas do advogado na manhã do dia seguinte, se arrumou o mais rápido
que pode e abriu a porta.
- Dr.
Augusto? - disse Felipe abrindo a porta - acabei dormindo mais do que devia.
Vamos arrumar a papelada para o senhor vender essa casa, não quero passar mais
um dia nesta cidade - disse abrindo espaço para que o outro entrasse na casa e
deu uma olhada rápida na rua, todas as carrancas estavam na posição normal, ao
lado das portas e olhando para o outro lado da rua, e não para a parte baixa da
rua em direção ao rio, onde ele estava ontem. Seus instintos disseram que ele
deveria correr naquele momento e sair da cidade. Fechou a porta e ao se virar
para dentro da casa apenas sentiu a paulada na cabeça que o fez desmaiar.
Ao
acordar, estava amarrado dentro de uma canoa, a cabeça latejava de dor, não
tinha forças para se mover. Pode ver o sol se pôr refletindo nas águas do rio.
- Sabe
- ele ouviu a voz do Dr. Augusto - o erro do seu tio foi não ter destruído o
testamento quando teve chances, o tempo estava passando e precisávamos de você
para acalmar a fome do Caboclo. Vinte anos para ele é como uma noite, e você
estava realmente bem escondido - apertou mais o nó para garantir e começou a
empurrar a canoa para o rio - não se preocupe que ele sempre manda de volta o
crânio e faremos uma bela carranca com a sua. A única coisa que ele não ataca
são as casas protegidas com as carrancas feitas de crânios de suas vítimas. A
dos seus pais estão na casa de Vó Ira, ela mesma que talha a madeira e põe os
crânios dentro, ela diz que depois que esculpe e pinta ela sente a alma da
vítima indo para dentro da madeira. Obrigado por acalmar o Caboclo D’água,
Penedo tem mais vinte anos de vida graças a você - deu um empurrão com a perna
e a canoa foi levada para as águas já escuras do anoitecer.
Felipe
tentou se soltar, mas a corda estava muito bem amarrada, porém ele ficou
paralisado de medo quando ouviu um barulho de água e algo se agarrando ao lado
da canoa, com o canto do olho ele viu uma garra fina atravessando a madeira e
saindo. Sentiu algo pular para dentro do barco fazendo um barulho gutural bem
atrás de si.
Durante
a procissão dos pescadores no outro dia uma caveira emergiu das águas. Todos já
sabiam a quem entregar.
- Essa
carranca vai ficar linda - disse vó Ira ao Dr. Augusto - e irá proteger sua
casa. Aproveite e já comece a arrumar a venda da casa azul, vinte anos passam
rápido, lembre-se que para o Caboclo D’água isso é como uma noite de sono, e
ele sempre acorda com fome.
- Obrigado vó
Ira. A procissão está linda esse ano, muito mais pescadores do que a vinte anos
atrás.
- Sim,
realmente muito bonita, ouso dizer a mais bonita dos últimos cento e cinquenta
anos.
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