Eriberto | Contos




ERIBERTO

O contrassenso da colocação social é que independente de onde você se encontre na sociedade, branco, negro, ateu, monge, cristão, de santo ou não, tudo o que as perspectivas dão é uma falsa ilusão de entendimento real da vida. E se há alguma coisa que Eriberto sabe sobre ele e o todo, é que ele não tem perspectiva para entender a ilusão que pode ser o real ou qualquer outra mentira que possa ser a realidade ou não da vida.

Eriberto parte, de início, daquela parcela da sociedade que é como se fosse uma alucinação coletiva que nem a realidade enxerga. Aquele típico brasileiro que acorda, defeca o que não comeu, morre em transporte público, revive no trabalho para voltar a morrer aos poucos até às dezoito e terminar de morrer até o caminho de casa. Isso sem querer reforçar a lembrança do purgatório que sofre em casa, não quero e nem mereço, revelar o contraste do desgosto conjugal por vidas perdidas dentro do matrimônio forçado. Ter um filho não é o pior motivo para se forçar a casar, comungar de uma falsa religião que pune o erro juvenil com matrimônio é o pior crime que um deus criado por homens pode causar na vida de duas pessoas.

Minha vida é formada pela perspectiva do abandono de minha própria vontade de viver, não que Eriberto se utilize de vitimização para se expressar, nem conheço esta palavra, o que sabe e aprendeu é viver, existir, resistir, produzir e morrer diariamente. 

Toda cidade é o lar de Eriberto, em toda cidade é possível que Eriberto passe, dissolvendo-se entre uma baldeação e outra, não sei se vivo ou não existo, deve ser a estatística do sonho que nunca foi sonhado por conta de uma herança que não pode dizer não. Pai negro mãe branca, ambos pobres, ambos sofreram com dedos esticados, os apontando, a vergonha de duas cores que cometem o pecado de praticar o amor, a fusão de tonalidades que nem mesmo o pastor entende, mas aceita já que o dízimo está em dia. Herança essa que vai além de sua pele não tão negra, mas escura o suficiente para despertar medo nos que realmente existem, herança da falta de educação, herança da falta de ter o que comer em casa, herança essa que sempre será reforçada pela cegueira seletiva de todos.

Eriberto, sua família, sua filha, que em breve irá engravidar e seguirá o fluxo da sua herança social. Eles serão vistos somente quando conveniente para alguns intelectuais que usam a inanição das massas para dar um peso que não compreendem a seus artigos roubando a visibilidade que outros merecem mais, assim continuo com essa vida que mais me parece um vazio que não posso mais ocupar.

O problema da invisibilidade social não é quando o indivíduo cruza sua cidade sem ser visto, fazer isto todos os dias como faço é fácil de se acostumar, o problema não é o indivíduo ser usado por outros, não ganhar nada e continuar morto, isso é fácil de se acostumar também. O grande problema da invisibilidade social é quando você começa a se sentir invisível ao olhar para o espelho, posso não ter estudo, posso não ter dinheiro, posso ver que minha filha seguirá o mesmo caminho que eu, mas ontem não soube dizer o que sou ao acordar, não me vi no espelho, não me vi ao tomar o café sem o açúcar, que acabou, não me vi na fila do ônibus e nem recebendo o troco do cobrador, não me vi no trabalho enquanto carregava o carrinho de mão, mas vi o engenheiro chegar naqueles carrões de banco de couro. Não me vi em nada, mas vi muito.

Eriberto não se matou, tinha que garantir o pouco que ganhava para sustentar a casa da maneira que pode. Eriberto não fugiu, o pouco de boa herança que recebeu da mãe lhe deu integridade de caráter, não posso largar minhas responsabilidades. Porém Eriberto começou a não se enxergar mais, não se alimentava mais, recarregava-se apenas para manter a caminhada da parada ao serviço, não dormia mais, apenas encostava o corpo onde poderia relaxar os músculos. Eriberto se tornou aquilo que sua herança determina, perder a esperança e viver no limite do que os que são vistos e governam mandam que ele faça, viva sua vida como planejamos, não saia da expectativa de ser massa, sustente o país, mas não espere crescer, seja o que te demos como herança. Assim continuo me sentindo deslocado, sem imagem real do que sou, pois nunca tive a oportunidade de saber o que posso ser.


Paulo Souza


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