Descobertas Mentais | Contos




Descobertas Mentais

 I


O despertador tocou mais uma vez às cinco e quinze da manhã. Olavo, como fazia todas as manhãs, tateava com as pontas do dedo procurando o botão que o faria parar de dar aqueles bips agoniantes.

Olavo sempre foi um cara normal com uma vida normal, foi uma criança como qualquer outra e brincou na rua se arranhando vez ou outra. Foi para a adolescência e teve aquela vergonha inexplicável de se aproximar das garotas, foi para a faculdade e teve o seu primeiro porre de verdade e finalmente chegou ao seu patamar atual, em um emprego normal em uma empresa multinacional.

Sua vida nunca foi de muitas aventuras ou algo do tipo, sempre viveu dentro do que é esperado. Em suas férias sempre preferia ir para a casa de parentes, uma vez foi ao litoral com a mulher, mas não gostou por ser muito mais trabalhoso ficar hospedado em um hotel e andar por uma cidade que não conhecia do que ficar no conforto da casa de alguém conhecido.

Mas a sua vida sofreria uma mudança de cento e oitenta graus naquele dia em que acordou mais uma vez tateando o despertador para silenciá-lo.

Ele levantou tomou seu banho e em seguida foi tomar café enquanto via os telejornais matinais sem prestar muita atenção no que ouvia, já vivia em um estado de inércia automática, era praticamente um robô.

Como costume deixou sua mulher no serviço, pegou o caminho para o seu próprio trabalho e em questões de minutos já havia chegado.

Nada de anormal, ele foi e se sentou em sua baia de trabalho, como trabalhava na área de desenvolvimento de software ele ficava em uma enorme sala com dezenas de mesas divididas por divisórias brancas delimitando os espaços. No ritmo ainda automático que vivia ele começou a trabalhar.

As horas de trabalho foram passando e Olavo continuava seus afazeres sem se preocupar com o que acontecia à sua volta, quando de repente foi surpreendido por um visitante.

– Bom dia.

Olavo surpreendeu-se, nunca recebia visitas no trabalho, ao olhar o dono da voz viu um homem alto, de corpo forte e estruturado com cabelos negros e uma barba cerrada que lhe cobria o queixo protuberante – Bom dia, em que posso ajudar?

– Qual o seu nome? – perguntou o homem entrando no espaço apertado da baía de trabalho.

– Olavo, mas qual o seu? – Olavo já o olhava com a expressão um pouco fechada.

– Muita falta de educação da minha parte não é mesmo? Me chamo Arnaldo. Se não for muita pretensão minha, poderia saber o que você está fazendo aqui?

– Trabalhando. Agora se me dá licença tenho que terminar essa programação – ele virou-se para a tela sem querer mais dar atenção ao seu visitante inesperado, queria apenas voltar a sua rotina.

– Já que me disse que está ocupado entendo o motivo de você estar sozinho aqui – disse o homem enquanto saía do cubículo e lhe dava pequenos tapas no ombro – qualquer coisa vou esperar um elevador para ir embora, mesmo que isso não seja do seu interesse.

Olavo tentou não olhar para não prolongar mais aquela conversa surreal, e manteve-se com o olhar fixo na tela do computador por mais que não estivesse fazendo nada. Ficou ali parado apenas escutando os barulhos de toc toc toc do sapato de Arnaldo se afastando gradualmente até que tudo ficou em silêncio e Olavo pôde voltar a se concentrar no trabalho.

– Finalmente silêncio – disse ele para si mesmo – já é quase onze horas, daqui a pouco é a hora do almoço.

Mas para o seu espanto ele não conseguia voltar à atenção para desempenhar o seu trabalho, conseguiu apenas manter sua atenção focada no silêncio da sala, nenhum bater de teclas, ou uma respiração mais alta, uma conversa paralela, um nada de barulho. Olavo se levantou lentamente para poder olhar por cima da divisória e para o seu espanto não viu nenhuma cabeça, nem mesmo a careca característica do Joaquim que reluzia com a luz da lâmpada.

Olavo de súbito correu para o corredor no desespero de ainda encontrar Arnaldo esperando o elevador.

– Ei! – gritou Olavo enquanto saia da sala – me espere!

Arnaldo permanecia parado a frente do elevador.

– O que está acontecendo aqui? – Olavo estava ofegante – Digo, onde estão todos? E quem é você de verdade?

– Até que você veio mais rápido do que eu esperava – o elevador abriu as portas – vamos entre, precisamos conversar.

Olavo entrou ficou esperando que o homem lhe falasse alguma coisa, mas a única coisa que o homem fazia era ficar quieto e calado. O elevador desceu até o térreo, os dois saíram e Olavo acompanhou Arnaldo até o seu carro, o único estacionado.

– Onde está o meu carro? – perguntou Olavo agora preocupado.

– Que carro?

– Como assim que carro? Onde está o meu carro?

– Cada coisa há seu tempo.

– Como assim? Primeiro eu venho trabalhar, estaciono o meu carro onde costumo parar sempre, entro no meu serviço e de repente ninguém está lá mais. Como você quer que eu fique calmo e espere o tempo de cada coisa?

– Você disse que estacionou o carro onde sempre para. Você ao menos olhou ao redor para verificar se haviam outros carros no lugar?

– Claro… – Olavo foi pego de surpresa, parecia uma pegadinha que a sua própria mente estava lhe pregando – eu me lembro de ter chegado como faço todo dia, mas não me atentei aos outros carros.

– Então não diga com essa certeza coisas que você não viu.

Olavo começou a se preocupar – E as pessoas do meu trabalho?

– Você disse que chegou ao serviço, e que de repente não havia mais ninguém lá. Você pelo menos viu ou conversou com alguém?

– Bem, eu sempre fui uma pessoa reservada.

– Não foi essa a minha pergunta Olavo – Arnaldo abriu a porta do carro – venha entre temos que passar em um lugar.

– Mas eu devo ter conversado com alguém, apenas não me lembro bem.

– Às vezes não se lembra por não ter conversado de fato – disse Arnaldo começando a dirigir.

Olavo ficou assustado, como poderia ter entrado em um prédio, andou até a sua mesa e não ter dito um oi ou um olá – Por favor, me diga o que está acontecendo.

– Como eu disse Olavo, cada coisa a seu tempo, apenas peço para que você confie em mim e faça o que eu disser na hora apropriada.

– Como posso confiar em você?

– Levando-se em conta que sou a única pessoa com quem você conversou hoje, acho que sou um ponto a favor. Se confiar em mim saberá tudo o que está acontecendo, mas para isso deve confiar em mim, temos um acordo?

– Já que não há ninguém com oferta melhor, temos um trato.

– Muito bem. Para que você saiba o que está acontecendo você deve me fazer três perguntas, três perguntas chaves, três perguntas que lhe trarão a verdade.

– E quais são essas perguntas? – perguntou Olavo intrigado.

– Não é tão fácil assim Olavo, você tem que fazer a sua mente trabalhar, se não nunca iremos sair deste carro.

Olavo não sabia o que perguntar, tentou colocar sua mente para trabalhar com dificuldade, não soube distinguir quanto tempo passou ali sentado enquanto Arnaldo dirigia como que sem rumo. Parecia que a sua mente estava adormecida e pensar era um exercício cansativo e desgastante, era como se ele tivesse há um bom tempo sem usar a sua mente de verdade.

– Arnaldo, como eu saberei que perguntas são essas?

– Cada coisa há seu tempo.

– Está muito difícil pensar. Você não pode me dar uma dica que seja?

– Cada coisa há seu tempo.

– Eu não entendo, trabalho com desenvolvimento de software, penso arduamente durante toda a semana e não consigo pensar em uma pergunta que me responda o que está acontecendo.

Arnaldo permaneceu calado.

– Eu realmente tenho trabalhado?

– Esta, Olavo, é a primeira pergunta, vamos descer do carro. Chegamos ao lugar certo.

Para a surpresa de Olavo eles desceram exatamente no estacionamento de onde haviam saído.

– Vamos a sua mesa – disse Arnaldo andando na frente.

– Como que chegamos aqui tão rápido? Você estava dirigindo para longe e agora para aqui? – Arnaldo não o respondeu e apenas continuou a andar.

Ao chegarem à baía de trabalho de Olavo, ele se surpreendeu, mais atento agora com as coisas ele reparou que há muito tempo não era feita uma limpeza no lugar, a catraca estava quebrada e não precisava de um crachá para abri-la, foi aí que ele reparou e lembrou que nunca usou um crachá de fato. Os outros computadores estavam empoeirados e alguns até com as telas quebradas.

– Vamos ligar o seu computador para ver o seu trabalho – disse Arnaldo.

– Mas eu não desliguei, apenas sai correndo e o deixei ligado no que eu estava trabalhando.

– Para mim parece desligado, no que você estava trabalhando mesmo?

– Em desenvolvimento de software, mas não me lembro bem em qual software – por medo ele mexeu no mouse e não obteve nenhum sinal de resposta do monitor, foi aí que ele, com a mão tremendo, apertou o botão de ligar, que para a sua surpresa não funcionou – mas este computador estava ligado agora a pouco.

– Sabe Olavo, a mente é uma coisa engraçada de se entender, às vezes para que ela se mantenha viva ela cria mecanismos de auto preservação. Você me disse que trabalhava, mas não sabe bem no que, vinha aqui todos os dias, mas não se lembra de falar com ninguém, apenas ações automáticas, ações que a deixam funcionando quase que em um estado de hibernação.

– O que está acontecendo?

– Como eu disse, cada coisa a seu tempo, e esta coisa que estamos vivendo agora é o que vai determinar se você está pronto para continuar ou se devemos adiar nosso encontro até que você se amadureça mais. Então, Olavo, eu quero saber. Qual a sua próxima pergunta?

– Você fala em mecanismos de autopreservação da mente e de ações automáticas, mas sinceramente por mais que eu tente pensar nisso parece que a minha mente não funciona e tudo isso, digo, que eu nunca consegui reparar está me deixando assustado. Mas eu quero saber o que está acontecendo.

– Qual a sua pergunta Olavo? – perguntou Arnaldo.

– Nenhuma dica?

– Cada coisa há seu tempo.

– Pois bem, nem sei o que está acontecendo, mas eu quero saber.

– Qual a pergunta?

– O que está acontecendo com a minha mente?

– Depois de tantos encontros você finalmente está preparado Olavo, esta é a segunda pergunta.

II


– Como isso pode ter acontecido comigo? – Olavo perguntou a Arnaldo com uma voz fraca e presa por causa do medo que sentia.

– Esta não é uma pergunta que eu devo responder Olavo, cada coisa há seu tempo.

– Tudo bem, mas então quer dizer que todos os dias eu vinha aqui, sentava e passava o dia olhando para um computador sem fazer nada?

– Exatamente, sua mente estava criando uma ilusão para que você permanecesse vivo, é um mecanismo de autopreservação. Quando não estimulamos em nossa mente, ela se atrofia como um músculo que não se exercita, mas o cérebro é mais complexo que um conjunto de fibras musculares. Ao se ver sem estímulos externos ele começa a criar estímulos internos básicos para compensar a falta de atividade.

– Mas ainda não consigo compreender como eu vinha trabalhar e não percebia que estava sozinho.

– Olavo, vou lhe falar uma verdade sobre a vida. Quantas pessoas se entregam a rotina, se entregam no comodismo e não tem a coragem de sair de suas zonas de conforto? Elas passam pelas mesmas ruas, cumprimentam as mesmas pessoas, olham para a mesma paisagem, pensam as mesmas coisas, se preocupam com as mesmas contas e vivem deixando o tempo passar e não percebem o real mundo que os rodeia.

Olavo ia escutando Arnaldo e ia sentindo ondas de arrepio percorrer o seu corpo. Era como se aquelas palavras fossem especialmente pensadas para ele escutar, era uma verdade incrivelmente real para ele, uma verdade crua, amarga e difícil de engolir.

– Como uma mente – continuava falando Arnaldo – pode evoluir e se manter forte se a pessoa não se preocupa com isso? Então, Olavo, o cérebro cria mecanismos para manter essa pessoa viva. Se preocupar excessivamente com a vida de outras pessoas em especial com a de famosos, trabalhar durante quarenta e quatro horas semanais e ter um aproveitamento de pouco mais de oito horas semanais, passar ano após ano sonhando com o que iria fazer caso ganhasse na loteria, a mente faz pequenos estímulos internos para que a pessoa a mantenha trabalhando com atividades fracas, mas fracas o suficiente para que ele continue vivo.

– Isso aconteceu comigo – disse Olavo para si mesmo enxergando a verdade.

– Com você e com tantos outros milhares de pessoas, mas no seu caso podemos dizer que essa atividade interna cerebral é um pouco mais acentuada.

– Acentuada como?

– Ela foi ampliada, foi dada a sua mente, em particular, uma capacidade maior de responder aos estímulos internos.

Olavo olhava para ele com uma expressão de medo.

– Olavo, vamos ser práticos, como é o rosto da sua mulher?

Olavo não disse nada.

– Como foram as suas últimas férias?

Olavo não disse nada.

– Qual foi a notícia que você viu hoje no jornal?

Olavo permaneceu calado.

– Como foi o trânsito da sua casa até o trabalho?

Olavo não sabia o que responder.

– Onde foi que você deixou a sua mulher, ou melhor, você realmente estava acompanhado dentro do carro?

Olavo caiu no chão, sentia fortes dores em sua cabeça, ele tentou gritar por ajuda, mas não conseguia mais comandar o seu próprio corpo. Ele se contorcia sentindo os músculos se retesando e relaxando em um ritmo frenético, e então aconteceu.

Ele começou a ver em sua frente imagens, memórias como que se estivessem sendo projetadas, ele se via andando sozinho, indo ao “trabalho” e permanecendo sentado por horas olhando para uma tela desligada, via que conversava sozinho olhando para uma vassoura encostada na parede de ponta a cabeça, via parando o carro em frente a uma casa abandonada e depois partia. Foi aí que as dores na cabeça viraram pontadas e o seus espasmos musculares ficaram mais fortes e ele se deu conta que as imagens vinham de forma retroativa.

Ele viu o seu penúltimo encontro com Arnaldo, e depois outro e outro e outro até que ele perdeu as contas de quantas vezes mais ele viu aquele homem se apresentando. Depois viu luzes fortes e vários médicos a sua volta, e então se recordou do acontecimento.

Estava em um bar com vários amigos conversando quando na esquina passou um carro em alta velocidade disparando contra um carro de polícia que o perseguia e ali ele se recordou do tiro que levou. Depois disso sua visão ficou negra.

Quando voltou a si já tinha todas as memórias necessárias para se situar e já sabia que pergunta fazer.

– Arnaldo? – perguntou Olavo enquanto se levantava.

– Estou aqui – respondeu enquanto o ajudava a se erguer.

– Eu estou em coma?

– Sim, assim que você chegou ao hospital você já estava com diminuição da atividade cerebral e, sejamos francos, seu cérebro não era forte, você não o estimulava, não o exercitava. Para não deixarmos que você morresse tivemos que lhe submeter a uma técnica nova de estimulação cerebral, uma realidade virtual ligada ao seu cérebro.

– Por isso que tudo aqui é tão vago, tão vazio e sem nada?

– Sim, tudo aqui é um reflexo da sua mente, a sua falta de estímulo provoca isso, um mundo vazio e quebrado, falho e imperceptível para a pessoa que o habita.

– O que eu faço para acordar do coma? – perguntou Olavo procurando coragem e forças naquele momento de descobertas.

– Esta é a terceira pergunta Olavo, mas antes que eu lhe responda tenho algo a dizer. O que separa uma mente brilhante de uma mente sedentária é uma linha tênue entre apenas sonhar e trabalhar o sonho para que ele vire uma realidade. Dê passos fora de sua zona de conforto e aproveite esta oportunidade para ter uma segunda vida.

– Obrigado – disse Olavo no momento que Arnaldo sacou uma pistola e lhe disparou contra o peito.

Depois de muito tempo Olavo começou abrindo os olhos devagar para se acostumar com a claridade, ele estava deitado em uma maca com uma série de apetrechos e fios ligados a sua cabeça. Apertando a sua mão forte estava a sua mulher olhando-o com os olhos cheios de lágrimas e ao lado dela um médico que ele já conhecia, Arnaldo.


Paulo Souza


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